Em 21 de julho de 1939, a extremamente organizada Cecília Meireles (1901-1964) reuniu 20 recortes de artigos seus e datilografou uma página apresentando-os. "Relendo-os, verifico, dez anos depois, que ainda me comovem essas páginas", aprovou. "Hoje, eu apenas falaria, talvez, com menos palavras", ressalvou.
Batizado de "Episódio Humano", esse material, publicado em 1929 e 1930 em "O Jornal", sai agora pela primeira vez em livro. A família de Cecília e as editoras Batel e Desiderata somaram os 20 recortes a outros 11 encontrados na Biblioteca Nacional e os juntaram numa obra que pode ser o abre-alas de uma série. "Ainda há muito material inédito [em livro]. Minha avó tinha o hábito de montar as "bonecas" [prévias das edições] dos livros dela, deixava tudo pronto. Ainda há as crônicas sobre folclore, as conferências, a produção teatral...", conta Alexandre Teixeira, neto da poeta e administrador do espólio. Tudo o que ela guardou ainda está na casa em que morou boa parte da vida no Cosme Velho (Rio).
Cecília foi convidada por "O Jornal" para colaborar nas edições de domingo. São textos grandes para os padrões da imprensa de hoje.
Em sua quase totalidade, não têm relação com assuntos do momento. Dois que ela considerou "peças de circunstância" foram postos no apêndice da edição juntamente com um do mesmo perfil.
A jornalista Valéria Lamego, autora de "A Farpa na Lira - Cecília Meireles na Revolução de 30" e que nos anos 90 organizou 960 dos cerca de 2.500 textos escritos pela poeta para jornais, não vê o material publicado agora como crônicas. Ela diz que a própria Cecília nunca o reuniu sob essa rubrica. Mas são, é claro, prosas poéticas, entre as quais destaca "Um Grande Menino Polonês" e "Uma Criatura Sozinha".
"Como é comum em Cecília, elas estão na transitoriedade entre o efêmero e o eterno. Ainda têm uma carga forte do simbolismo, que depois ela ultrapassou", diz ela.
A professora da USP Ana Maria Domingues de Oliveira, autora de duas teses sobre Cecília, também ressalta o vínculo dos artigos com a fase simbolista, expressa nos livros dos anos 20 e superada com "Viagem" (1939).
"A gente nem consegue dizer bem qual é o tema [dos textos]", comenta ela, para quem Cecília é feliz ao observar que, em 1939, talvez transmitisse as mesmas idéias com menos palavras. "Mas não resta dúvida de que é uma poesia de altíssimo nível, mesmo em prosa."
Autora de "Cecília em Portugal", a pesquisadora em pós-doutorado do IEB (Instituto dos Estudos Brasileiros) da USP Leila Gouvêa encaixa os textos na chamada "fase imatura" (pré-"Viagem") da poeta. "Como bem lembrou T.S. Eliot, para se compreender a obra de maturidade de um autor é preciso conhecer também aquela que a antecedeu", diz ela, que destaca textos do livro: "Em "Apresentação do Bom Presságio", é possível identificar alusões ao platonismo que, tanto quanto algumas das chamadas "filosofias orientais", marcou o sentimento do mundo da poeta. "Estás Ficando Grande", talvez o mais fantástico, até certo ponto evoca a fantasia desmedida das "Mil e Uma Noites", que ela acabara de traduzir. E em praticamente todos os textos há a irrupção do inconsciente, uma das pedras de toque da lírica de Cecília."
Folha de S. Paulo 24/11/2007
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